segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Categorias da narrativa

Acção Quando falamos na estrutura de qualquer texto literário narrativo (conto ou romance), estamos a referir-nos ao conjunto de eventos que se vão desenvolvendo e sucedendo ao longo da obra, com limitações relativamente definidas, ou seja, os capítulos. Apesar de, neste romance, os capítulos não estarem numerados, o espaço em branco que surge imediatamente antes da primeira frase de cada um deles leva a crer, sem dúvidas, de que se trata de um novo capítulo. Vejamos, por ora, os principais factos que compõem a acção de Memorial do Convento: Construção do Convento de Mafra – o decorrer da construção do convento de ocupa grande parte da acção da obra e tem que ver com a narração de quatro grandes factos: a escolha do local por parte d’el-rei D. João V (Mafra); o lançamento da primeira pedra (em 1717, com direito a visita real e a procissão solene e pomposa); a construção propriamente dita do monumento (da qual sobressai o recrutamento forçado, em duas fases, os trabalhadores do povo, bem como os seus sofrimentos, o trabalho árduo e até a morte de alguns) e, por último, a sagração da Basílica, em 22 de Outubro de 1730. Construção da passarola – esta narrativa é considerada encaixada, por ser paralela à narrativa que diz respeito à construção do convento. A passarola é desenhada e arquitectada pelo Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão (depois de seguidos conselhos holandeses sobre o seu combustível, ou seja, âmbar e éter) e com a ajuda de Baltasar e Blimunda, a “máquina de voar” vai sendo construída secretamente na quinda do duque de Aveiro, em São Sebastião da Pedreira. Depois de acabada, seguiu-se o éter (“vontades dos vivos” que a vidente recolhia na hora em que eles morriam) e o primeiro voo da passarola vai sobrevoar Lisboa e Mafra, vindo a cair no Monte do junto, momento este em que o Padre Bartolomeu desaparece e virá a morrer, anos mais tarde, em Toledo (Espanha). Retrato da relação amorosa entre Baltasar e Blimunda – esta é também considerada uma narrativa encaixada e trata de uma relação amorosa “livre”, dado que, depois de os dois se conhecerem no auto-de-fé, que condenou a mãe de Blimunda a açoites públicos e ao degredo em Angola, passaram a viver juntos, sem oura bênção sacerdotal que não a que lhes deu o Padre Bartolomeu. A narração desta relação inclui referências às relações sexuais naturais que resultam do amor entre ambos e que nada têm de obsceno e pecaminoso, uma vez que os dois se amam verdadeiramente, sem necessitarem de acto matrimonial oficial de espécie alguma. Depois de ter ido visitar a passarola ao Monte de Junto (onde passou a estar escondida), Baltasar desaparece misteriosamente, sendo que Blimunda o virá a encontrar, ao fim de nove anos de sofrida procura, a arder numa fogueira resultante de mais um tenebroso e irracional auto-de-fé. Outras narrativas de personagens (cujo papel é menor) que vão surgindo ao longo da obra (João Elvas, Francisco Marques, José Pequeno, Joaquim da Rocha, Manuel Milho, João Anes, Julião Mau-Tempo e Baltasar Mateus) – estas narrativas de importância subalterna dizem, regra geral, respeito a autoapresentações destas personagens do Povo (ou antigos soldados, tal como Baltasar Mateus e João Elvas), seguidas de histórias de tradição oral do Povo, contadas à noite, nas tabernas improvisadas no Alto da Vela (loval mafrense exacto da construção do convento). Personagens (Dimensão Simbólica) Em Memorial do Convento há dois grupos antagónicos de personagens: a classe opressora, representada pela aristocracia e alto clero, e os oprimidos, o povo. No primeiro grupo destaca-se a actuação do Rei, enquanto que no segundo, além de Baltasar e Blimunda, se integram o padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, perseguido pela Inquisição, pela modernidade do seu espírito científico, e Domenico Scarlatti que, pela liberdade de espírito e pelo poder subversivo da sua música, é uma figura incómoda para o Poder. É ainda importante referir que, em Memorial do Convento, as personagens históricas convivem com as fictícias, conduzindo à fusão entre realidade e ficção. D. João V Rei de Portugal de 1706 a 1750, desempenha o papel de monarca de setecentos que quer deixar como marca do seu reinado uma obra grandiosa e magnificente - o Convento de Mafra. Este é construído sob o pretexto de que cumpre uma promessa feita ao clero, classe que "santifica" e justifica o seu poder. É símbolo do monarca absoluto, vaidoso, megalómano, egocêntrico, e mantém com a rainha apenas uma relação de "cumprimento do dever" e, em alguns momentos, pretende ser um déspota esclarecido, à semelhança dos monarcas europeus da sua época (favorece, durante algum tempo, o projecto do padre Bartolomeu de Gusmão e contrata Domenico Scarlatti para ensinar música a sua filha, a infanta Maria Bárbara). Dado aos prazeres da carne e a destemperos vários (teve muitos bastardos e a sua amante favorita era a Madre Pauta do Convento de Odivelas). Sacrificou todos os homens válidos e a riqueza do país na construção do convento. Maria Ana Josefa De origem austríaca, a rainha, surge como uma pobre mulher cuja única missão é dar herdeiros ao rei para glória do reino e alegria de todos. É símbolo do papel da mulher da época: submissa, simples procriadora, objecto da vontade masculina. Baltasar Sete-Sóis Baltasar Mateus, de alcunha Sete-Sóis, deixa o exército depois de ter ficado maneta em combate contra os espanhóis, conhece Blimunda em Lisboa, e com ela partilha a vida e os sonhos. De ex-soldado passa a açougueiro em Lisboa e, posteriormente, integra a legião de operários das obras do convento. A sua tarefa máxima vai ser a construção da passarola, idealizada pelo padre Bartolomeu de Gusmão, passando a ser o garante da continuidade do projecto, quando o padre Bartolomeu desaparece em Espanha. Baltasar acaba por se constituir como a personagem principal do romance, sendo quase "divinizado" pela construção da passarola: "maneta é Deus, e fez o universo. (...) Se Deus é maneta e fez o universo, este homem sem mão pode atar a vela e o arame que hão-de voar. " - diz o padre Bartolomeu a propósito do seu companheiro de sonhos. Após a morte do padre, Baltasar ocupa-se da passarola e, um dia, num descuido, desaparece com ela nos céus. Só é reencontrado, nove anos depois, em Lisboa, a ser queimado no último auto-de-fé realizado em Portugal. O simbolismo desta personagem é evidente, a começar pelo seu nome: sete é um número mágico, aponta para uma totalidade (sete dias da criação do mundo, sete dias da semana, sete cores do arco-íris, sete pecados mortais, sete virtudes); o Sol é o símbolo da vida, da força, do poder do conhecimento, daí que a morte de Baltasar no fogo da Inquisição signifique, também, o regresso às trevas, a negação do progresso. Baltasar transcende, então, a imagem do povo oprimido e espezinhado, sendo o seu percurso marcado por uma aura de magia, presente na relação amorosa com Blimunda, na afinidade de "saberes" com o padre Bartolomeu e no trabalho de construção da passarola. Baltasar é uma das personagens mais bem conseguidas de todo o romance porque descrever a ambição de um rei, as intrigas duns frades e a loucura de um cientista é relativamente fácil, mas escolher uma personagem do povo, maneta e vagabunda, que aparentemente não tem muito para dizer e convertê-la no fio condutor da narrativa e no protagonista duma das mais belas e sentidas histórias de amor, é algo que só conseguem autores como Cervantes, que de um criado como Sancho Pança criou um arquétipo e um digno "antagonista" de Dom Quixote. Baltasar é um homem simples, elementar, fiel, terno e maneta, que confina a capacidade de surpresa com a resignação típica das pessoas humildes de coração e de condição. Aceita a vida que lhe foi dado viver e a mulher que o destino lhe ofereceu, sem assombro nem protestos; acata as suas circunstâncias e não tem medo nem do trabalho nem da morte. Não é um herói nem um anti-herói, é simplesmente um homem. Blimunda de Jesus Blimunda de Jesus é "baptizada" de Sete-Luas pelo padre Bartolomeu de Gusmão ("Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, (...) Blimunda, que até aí só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem baptizada estava, que o baptismo foi de padre, não alcunha de qualquer um"). Conhece Baltasar quando assiste à partida de sua mãe, acusada de feitiçaria, para o degredo. Logo os dois se apaixonam, e este amor puro e verdadeiro foge às convenções, subvertendo a moral tradicional e entrando no domínio do maravilhoso - primeira noite de amor. Blimunda tem um dom: vê o interior das pessoas quando está em jejum, herdou da mãe um "outro saber" e integra-se no projecto da passarola, porque, para o engenho voar, era preciso "prender" vontades, coisa que só Blimunda, com o seu poder mágico, era capaz de fazer. Blimunda é, simultaneamente, uma personagem que releva o domínio do maravilhoso, pelo dom que tem de ver "o interior" das pessoas (poder que nunca exerce sobre Baltasar: "Nunca te olharei por dentro"), porque amar alguém é aceitá-lo sem reservas. Blimunda encerra uma dimensão trágica na vivência da morte de Baltasar. Simbolicamente, o nome da personagem acaba por funcionar como uma espécie de reverso do de Baltasar. Para além da presença do sete, Sol e Lua completam-se: são a luz e a sombra que compõem o dia - Baltasar e Blimunda são, pelo amor que os une, um só. A relação entre os dois é também subversiva, porque não existe casamento oficial e porque os dois têm os mesmos direitos, facto inverosímil em pleno século XVIII. Como outras personagens femininas de Saramago, também Blimunda tem uma grande firmeza interior, uma forma de oferecer-se em silêncio e de aceitar a vida e os seus desígnios sem orgulho nem submissão, com a naturalidade de quem sabe onde está e para quê. Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão O padre Bartolomeu, personagem real da História, forma com Baltasar e Blimunda o núcleo mágico e trágico do romance. Vive com uma obsessão, construir a máquina de voar, o que o leva a encetar uma investigação científica na Holanda. Como cientista ignora os fanatismos religiosos da época e questiona todos os principias dogmáticos da Igreja. O seu sonho de voar e as suas inabaláveis certezas científicas revelam orgulho, "ambição de elevar-se um dia no ar, onde até agora só subiram Cristo, a Virgem e alguns santos eleitos" e tornam-no persona non grata para a Inquisição que o acusa de bruxaria, obrigando-o a fugir para Espanha e a deixar o seu sonho/projecto nas mãos de Baltasar. A sua obsessão de voar domina-o de tal forma, que ele não se inibe de integrar no seu projecto um casal não abençoado pela Igreja e de aceitar e usufruir das capacidades heréticas de Blimunda, que farão a passarola voar. A passarola, símbolo da concretização do sonho de um visionário, funciona de uma forma antagónica ao longo da narrativa: é ela que une Baltasar, Blimunda e o padre Bartolomeu, mas também é ela que vai acabar por separá-los. Domenico Scarlatti Artista estrangeiro contratado por D. João V para iniciar a infanta Maria Bárbara na arte musical. O poder curativo da sua música liberta Blimunda da sua estranha doença, permitindo-lhe cumprir a sua tarefa ("Durante uma semana (...) o músico foi tocar duas, três horas, até que Blimunda teve forças para levantar-se, sentava-se ao pé do Cravo, pálida ainda, rodeada de música como se mergulhasse num profundo mar, (...) Depois, a saúde voltou depressa"). Scarlatti é cúmplice silencioso do projecto da passarola ("Saiu o músico a visitar o convento e viu Blimunda, disfarçou um, o outro disfarçou, que em Mafra não haveria morador que não estranhasse, e (...) fizesse logo seus juízos muito duvidosos”). É, ainda, Scarlatti que dá a notícia a Baltasar e Blimunda da morte do padre Bartolomeu. A música do cravo de Scarlatti simboliza o ultrapassar, por parte do homem, de uma materialidade excessiva, e o atingir da plenitude da vida. Bartolomeu de Gusmão, esse, aliado em diálogo excepcional com o músico Scarlatti, o único que pode de raiz compreender as suas congeminações aladas, representa a possibilidade de articulação entre a cultura e o humano, entre o saber e o sonho, entre o conhecimento e o desejo (...) São os caminhos da ficção os que mais justificadamente conduzem ao encontro da verdade. Tempo O tempo em Memorial do Convento pode ser perspectivado segundo três vertentes: o tempo histórico (pertencente à História de Portugal); o tempo desta história contada por Saramago, isto é, a sua narrativa e, por último, o tempo do discurso que é aquele que, sendo relativamente vago (dias, meses, anos), remete para a sucessão de acontecimentos na narrativa. Já sabemos que o tempo histórico corresponde a alguns anos do reinado de D. João V, designadamente no que se refere à sua promessa de emergir um convento de franciscanos “em troca” de um descendente. Assim, a primeira pedra da obra foi colocada no dia 17 de Novembro de 1717 (o que, de facto, aconteceu historicamente), sendo a Basílica do Convento de Mafra inaugurada ainda em vida d’el-rei, a 22 de Outubro de 1730, depois de aceleradas as obras e recrutados à força milhares de membros do Povo. No sentido de confirmar este período histórico, Saramago oferece ao leitor um conjunto de descrições pormenorizadas sobre personagens, espaços e outros eventos que os registos históricos também confirmam. A estes pormenores compete dar “cor local”, ou seja, desenhar o ambiente em que personagens e história se desenvolvem. Vejamos alguns exemplos: a informação de que o arquitecto alemão Frederico Ludovice foi o encarregado da obra durante algum tempo; a vinda de materiais do Brasil e de outros países da Europa (nomeadamente obras de arte e decoração); o pedido do rei em adiantar as obras e sua consequente inauguração e a vinda de, pelo menos, uma pedra gigante da localidade de Pêro Pinheiro para Mafra. Quanto ao tempo da narrativa saramaguiana, existem, no romance, informações explícitas ou indirectas a vários momentos da nossa cronologia, que se resumem a 28 anos. Consideremo-los agora: 1711 é a primeira referência temporal, quando se lê a propósito d’el-rei D. João V “um homem que ainda não fez vinte e dois anos” (el-rei nasceu em 1689); 17 de Novembro de 1717 marca o início das obras em Mafra, com a colocação e bênção da primeira pedra; 8 de Junho de 1719 é a data referida para a procissão do Corpo de Deus; 1727 é o ano implicado na sequência frásica “dezasseis anos passaram desde que a vimos pela primeira vez” – sobre Blimunda; 22 de Outubro de 1730, data indicada por D. João V para a sagração da Basílica, momento da celebração dos seus 41 anos de idade; 1739 é a última data implicada na obra, por meio da frase que inicia o último capítulo de Memorial do Convento, “Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar”, momento que se seguiu ao desaparecimento misterioso deste homem. No que diz respeito ao tempo do discurso, o romance refere-se à passagem do tempo dentro da narrativa, através do recurso a dias, meses e anos, como acontece nos exemplos a seguir indicados: “Ao outro dia, depois d’el-rei partir para a cortes”; “Aí está Junho”; “Agosto acabou, Setembro vai em meio”. É neste tipo de tempo, o do discurso, que o narrados, omnisciente e sempre sabedor, manipula as informações que quer dar aos leitores, referindo-se a tempos anteriores à construção do convento, ou posteriores a ela. Essa técnica de referência temporal é conseguida através de analepses, prolepses, elipses e resumos, que vão fazendo variar o ritmo do discurso e da narração. Espaço Espaço Físico – em termos físicos, os espaços privilegiados são Lisboa e Mafra, locais que correspondem à construção dos dois projectos impulsionadores da acção e de observação privilegiada dos autos-de-fé como autoridade reguladora que representa o poder da Igreja; Espaço Social – corresponde à recriação de ambientes da época, neste caso o Portugal do século XVIII marcado pelo Iluminismo trazido pelos estrangeirados e ao mesmo tempo pelo obscurantismo da população e o medo do poder da Inquisição. Refere-se aos meios (procissões, corte, palácios, igrejas) em que as classes sociais se movimentam e que contribuem, afinal, para o leitor perceber as grandes diferenças (injustas) entre elas; Espaço Psicológico – diz respeito a reflexões , meditações, visões, sonhos e a demais pensamentos das personagens, tais como os momentos de reflexão e angústia de Blimunda, quando procura Baltasar e vagueia por Portugal inteiro (e Espanha). Narrador O narrador do Memorial do Convento é, quanto à ciência (ou conhecimento da história), claramente omnisciente, o que significa que conhece toda a história, podendo manipulá-la, referindo-se a momentos anteriores (analepses) e posteriores (prolepses) que vai espalhando pelo meio dessas narrativas. Por ser omnisciente é que o narrador se assume também comentador e crítico (através da ironia e do sarcasmo) dos momentos e acontecimentos que vai narrando, muitas vezes tecendo comentários numa espécie de tom confessional. Quanto à sua presença no romance, este narrador assume três posições: é heterodiegético, quando se refere às personagens na terceira pessoa do singular ou do plural; é homodiegético, quando se inclui nas narrações ou comentários e autodiegético, quando discursa sobre a moral (ou falta dela) das personagens e dos tempos do seu romance – neste caso é o verdadeiro protagonista da narração, pois está a expressar os seus pontos de vista. A propósito de pontos de vista, o narrador actualiza-nos por meio de duas estratégias de focalização de personagens e ambientes: a focalização omnisciente (mostra tudo saber sobre a história) e a focalização interna (dar oportunidade a uma personagem de perspectivar outras personagens ou ambientes).

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